Por R.B. Côvo

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos fizeram uso de uma das mais poderosas máquinas de propaganda – o cinema – fazendo de Hollywood mais do que uma sede cinematográfica, uma sede cultural.

Em 1492 Colombo pisou pela primeira vez solo americano. Sedento de ouro, ávido de riqueza e tomado pela ânsia da cruzada religiosa, principiava, sem que desse conta, a problemática da relação com o Outro. Surgem a partir daí os mais variados estudos e relatos, uma espécie de propaganda e contrapropaganda, em que se discutia quem eram os indígenas, se tinham ou não tinham alma, se eram ou não iguais aos europeus do século XVI. Séculos mais tarde, já numa época de intensa política imperialista, os Estados Unidos da América e a União Soviética, no período da Guerra Fria (1945-1991), viveram um estranhamento similar, em que as máquinas de propaganda se colocaram a serviço da desmoralização e do denegrir da imagem do outro.

Nesse contexto imperialista, de procura da hegemonia e do domínio geopolítico, os norte-americanos serviram-se de um meio propagandístico de grande escala – o cinema – produzindo a mais variada cinegrafia de teor anticomunista, em que soviéticos e seus aliados eram pejorativamente representados, vistos como a origem – e não o digo com exagero – de todos os males e de todos os perigos. Os estadunidenses, herdeiros dos europeus do século XVI, numa espécie de “déjà vu”, representavam nas películas soviéticos sem alma, desumanos e sobremaneira ameaçadores à paz e prosperidade mundial. O mundo, esse era bipolar: ou estávamos do lado deles ou contra eles. Era uma cruzada onde não existia meio termo ou abstenção que valesse.

Criaram-se nesse período os mais diversos filmes-propaganda: “Ele pode ser um comunista”, de 1951 (filme de informação das forças armadas norte-americanas que supostamente ensinava como reconhecer um comunista), “Duck and Cover”, também de 1951, voltado para o público infantil, que alardeava uma iminente guerra nuclear, “Anjo do Mal”, em 1953, de Samuel Fuller, “On the Beach”, de 1959 (que embora não mencionando diretamente os soviéticos, relatava uma catástrofe nuclear), “O pesadelo vermelho”, de 1962, “Moscou contra 007”, de 1967, com Sean Connery no papel de James Bond, “Rambo II” e “Rambo III”, nos anos 80, Braddok, de 1984, Red Dawn, de 1984, entre outros, alguns mais marcadamente propagandísticos, outros mais sutis nos seus propósitos. Todos, de uma forma ou de outra, fomentavam uma visão estereotipada quer do americano, quer do soviético, e, ao mesmo tempo, do capitalismo e do comunismo. De um lado, os Estados Unidos da América sempre representado como o protetor mundial, o garantidor do sucesso e do bem da humanidade, pátria mãe dos heróis destemidos capazes de nos libertarem da tirania dos opressores comunistas, que de outro lado são representados, invariavelmente, como seres capazes das maiores atrocidades, ateístas, frios e calculistas, a quem o poder, e somente o poder, importa, capazes de nos guiarem até a destruição total do planeta. O quadro do cinema hollywoodiano na Guerra Fria era esse: o bem contra o mal, os Estados Unidos contra a União Soviética, o capitalismo contra o comunismo, o herói contra o vilão. O que não era em si mesmo uma novidade. Os norte-americanos foram sempre, de certa forma, hábeis (como, aliás, acontece nos dias de hoje), na projeção, estereotipização e tipificação do Outro. O cinema hollywoodiano, mesmo nos dias de hoje, coloca-se ao lado de uma visão do outro, seja o comunista, o oriental ou o islâmico, reduzida e generalizada. Assim, é passada para o grande público a ideia de que os árabes, por exemplo, são, regra geral, terroristas, inimigos em grande escala da humanidade, cujos propósitos são apenas o sangue pelo sangue.

Como se percebe na leitura de “Orientalismo”, de Edward Said, publicado na década de 70, o ocidente instrumentalizou e criou uma imagem do mundo oriental que é aceite inequivocamente por nós ocidentais. Isso à margem de qualquer escolha ou intervenção oriental, muitas vezes legitimador de intervenções bélicas e, por conseguinte, dos interesses ocidentais, em que se destacam os Estados Unidos da América. Guerras como a Guerra do Golfo, a Guerra no Afeganistão, entre muitas outras ingerências dos norte-americanos em territórios orientais, encontram respaldo nas ideias de violência exacerbada dos islâmicos, da inferioridade moral dos árabes, da sua pequenez de caráter, alimentadas pelo cinema e por outros veículos de propaganda, que agem sobre o imaginário coletivo.

De fato, desde a Doutrina Monroe, os Estados Unidos da América sempre envidaram esforços no sentido da conquista e estabelecimento de uma hegemonia mundial. Na América Latina, por exemplo, são inúmeros os casos de financiamento de golpes de Estado com vista à defesa de seus interesses na região (petróleo, água, minerais, etc). Durante o período da Guerra Fria pode citar-se o golpe de Estado contra Velasco Ibarra, em 1961, no Equador, o Golpe de Estado contra o presidente João Goulart, em 1964, no Brasil, o Golpe de Estado contra Paz Estenssoro, também em 1964, na Bolívia, o Golpe de Estado do general Augusto Pinochet, no Chile, em 1973, bem como a criação de forças paramilitares contra-insurgentes em El Salvador, em 1964, e a invasão para impedir a recondução do Presidente Bosch no cargo, na República Dominicana, em 1965, entre outros.

Cabem aqui as palavras de Héctor H. Bruit em seu livro “O imperialismo”. Quando do fim dos impérios coloniais, “Se a América Latina não foi esquartejada como a África, deveu-se ao fato – é preciso reconhecê-lo – de ter tido, sem que houvesse solicitado, um tutor. Um tutor ousado porque se atreveu a dizer que a América era para os americanos, num momento em que apenas tinha a ilusão de ser uma potência. No entanto, quando este tutor se transformou em grande potência, mudou de discurso e gritou que era dono”. (BRUIT, 1988)

Ora, o cinema, bem como outras formas de arte – os quadrinhos, os pôsters – foram ferramentas de propaganda de suma importância na prossecução dos objetivos imperialistas estadunidenses não só no período da Guerra Fria. Ainda hoje somos constantemente assaltados por uma visão americanista do mundo. Não por acaso quando pensamos em russos visualizamos quase invariavelmente vilões frios, doidos e beberrões de vodca. Do mesmo modo, o islâmico é o fundamentalista disposto a tudo, um fanático da fé, bárbaro sanguinolento.

O cinema no período da Guerra Fria espalhava a cultura do medo, multiplicava ameaças (o comunismo, a guerra nuclear, os espiões soviéticos, o fim do mundo), ao mesmo tempo em que instigava à coragem, ao nacionalismo e ao culto do herói.